É com enorme sentimento de esperança que lhe escrevo novamente para, em primeiro lugar, felicitá-lo pela sua decisão de se reformar da presidência da República de Angola, após 38 anos de poder.
Por Rafael Marques de Morais (*)
Muitos se interrogam sobre as razões que terão pesado na sua decisão. Desde especulações sobre o seu estado de saúde, a vontade pessoal, o esgotamento da sua imagem por causa dos escândalos de corrupção e incompetência do seu governo, a falência das suas políticas económico-sociais. Seja como for, a verdade é uma, camarada presidente: a decisão é acertada e deve representar um grande alívio para si, assim como para todos os angolanos de bem que aspiram à mudança e a uma nova liderança.
Mas é de esperança que devemos falar. Conto-lhe uma breve conversa que tive a caminho do aeroporto, em Joanesburgo, com o taxista zimbabweano. Falou-me do seu anúncio como algo positivo que deveria inspirar o seu presidente, Robert Mugabe, de 93 anos, a seguir o mesmo caminho. Na lista dos presidentes longevos, liderada pelo da Guiné-Equatorial, Teodoro Obiang Nguema, com mais um mês no cargo do que o camarada presidente, Robert Mugabe é o terceiro. Ao optar voluntariamente pela sua saída, o camarada presidente acaba de tornar-se um exemplo entre os ditadores. É um mérito. Oxalá o sigam.
Acredito que, nos meses que lhe restam enquanto presidente, o camarada tomará algumas decisões destinadas a limpar e a arrumar um pouco o seu governo, para que o seu sucessor encontre uma casa com certa ordem.
Um dos pontos que mais tem desgastado a sua imagem e que exige atenção urgente é a partilha do poder com os seus filhos. Aproveite para criar também um ambiente de humildade e segurança no que diz respeito à sua família, tomando a decisão de demitir, também voluntariamente, os seus filhos José Filomeno do Santos da presidência do Fundo Soberano, e Isabel dos Santos da Sonangol. Isso teria um significado muito importante, prenunciando o fim do nepotismo. O seu sucessor e respectivo governo não seriam tentados a seguir as más práticas do passado, e a sociedade tornar-se-ia mais exigente na demanda pela transparência, integridade e boa conduta dos dirigentes.
Ademais, seria sem dúvida um imenso alívio para os seus filhos, que, livres desses encargos oficiais, poderiam então dedicar-se a gozar as suas fortunas. De outro modo, estarão sob maior pressão pública, porque serão vistos como a continuidade do poder do seu pai, e terão de prestar contas, independentemente da protecção que o próximo presidente lhes possa oferecer, por obediência, lealdade, respeito ou temor a si.
Não basta o seu anúncio de saída, camarada presidente, para garantir o seu estatuto pós-presidencial: pode e deve tomar medidas simbólicas demonstrativas de que está a arrumar a casa para o próximo inquilino. Valoriza-o a si e deve ser parte do seu legado.
Camarada presidente, tenho sido um crítico acérrimo do seu poder, pelas consequências que tem infligido no desvario da corrupção e na violação sistemática dos direitos humanos.
Mas o que mais ressinto, como ser humano e cidadão angolano, é o modo como o seu regime depauperou os angolanos excluídos dos privilégios ou da protecção do seu poder, negando-lhes dignidade enquanto indivíduos.
Incontáveis vezes me sinto isolado, hostilizado e humilhado por lutar pelos direitos dos meus concidadãos e por um governo que os sirva com honestidade e devoção. Sinto por vezes como se estivesse a cometer um crime. Por essa luta, alguns dos seus acólitos, como o embaixador António Luvualu de Carvalho, chegaram a apodar-me publicamente de traidor, de vende-pátria. É irónico: os que roubam e desgraçam Angola, em conluio com parceiros estrangeiros e escondem as riquezas do país no exterior, passaram a ser os grandes patriotas.
Confesso que, em determinada altura, dormia mais do que devia por exaustão e via bastante televisão como anestesia, mas nunca perdi a esperança e o norte. A sua saída oferece a melhor oportunidade histórica para afirmar a cidadania e libertar a mentalidade colectiva dos angolanos dos traumas da violência política, da humilhação dos predadores, do jugo da propaganda, da mentira, da repressão e da falsa ideia de que só a corrupção enriquece o homem. Hoje, orgulho-me de fazer a diferença.
É pelo triunfo da cidadania que continuarei a lutar, desta vez sem mais reservas e receios, porque não podemos deixar escapar esta oportunidade de contribuirmos para uma Angola em que o bem-estar do cidadão seja o foco das prioridades do novo governo. Falhámos em 1975 (independência unilateral), em 1992 (guerra pós-eleitoral) e, com a paz de 2002, vimos os recursos do país servirem para a acumulação primitiva de capital por parte dos dirigentes, familiares e parceiros de negócios. Hoje temos um Estado falido, vivemos de aparências, medos e ódios incubados.
Camarada presidente, mais uma vez, saúdo-o pela sua corajosa decisão de permitir aos angolanos um novo começo. Adeus, camarada presidente. Votos sinceros de longa vida.
Pela transformação de Angola, lutemos pela cidadania.
(*) Maka Angola
Imagem: Folha 8